RIO DE JANEIRO E PARIS: A JUVENTUDE APACHE DO CINEMA NA PERIFERIA

Radio UDESC: Sobre o conteúdo do livro em entrevista com Zuca Campagna

 

Prefácio do antropólogo, cientista político e escritor, Luiz Eduardo Soares

Algumas palavras sobre Rio de Janeiro e Paris: a juventude apache do cinema na periferia

Por que a tese de doutorado de Giovana Zimermann –agora, felizmente, este livro– fascina o leitor? A obra ensina, instrui, sistematiza, analisa processos sociais complexos, comparando-os no tempo e no espaço, entre Brasil e França. E recorre à análise de filmes para fazê-lo, com o auxílio de poetas, filósofos e cientistas sociais. Retoma hipóteses interpretativas sobre as margens, a invisibilidade na sociedade do espetáculo, as contradições da ordem, provocadas pela insinuação rebelde dos devires singulares –e nesse ponto me sinto particularmente concernido, porque a autora dialoga com as teses que expus no documentário 174, em alguns artigos e, em especial, no livro Cabeça de Porco (2005: Objetiva –em coautoria com Celso Athayde e MV Bill). Giovana Z. faz tudo isso, é verdade, e haveria aí razões para deter-me sobre suas ideias, estudá-las, desdobrar nosso diálogo. Entretanto, o que digo é diverso: antes de examinar sua obra e dissecá-la, como o fazemos com frequência –e alguma distância blasé–, os experts em necrópsias hermenêuticas, antes, portanto, de tomá-la como objeto de reflexão, a experiência de lê-la evoca outro tipo de aproximação. A obra dá-se à fruição, rende-se, oferta-se: agente sacrificial.

Em sua teoria sobre o sacrifício, reinterpretando Marcel Mauss, Lévi-Strauss afirma que esta modalidade de ritual articula-se em três etapas: (1) tem início com o estabelecimento de uma relação da comunidade com Deus (ou o personagem que ocupa a posição superior na cosmogonia nativa), por meio da eleição de um animal ou um objeto, consagrado para cumprir o papel de elo; (2) no segundo momento, o animal é abatido, o objeto é destruído, ou seja, o elo é rompido; (3) finalmente, a destruição do elo abre um vácuo, apto a atrair a dádiva divina. Eis, então, o que quero dizer: a escrita de Giovana Z. opera a mediação entre a comunidade de leitores e seu objeto, construído pela tessitura de uma trama entre tramas ficcionais, documentais, imagéticas, sonoras, que se individualizam sob edições diversas, de Einsenstein a Goddard e Truffaut, de Fernando Meireles e José Padilha (e Daniel Resende), para citar apenas algumas referências. Esse objeto, por definição, é, necessariamente, dotado de unidade, uma vez que se constitui como circunscrição temática à qual se aplicará a metodologia conducente ao conhecimento. Este objeto de pesquisa não são as tramas estético-simbólicas, mas o “real” das cidades, no capitalismo contemporâneo, o “real” dos jovens, dos processos sociais de exclusão e incorporação subalterna, das práticas violentas. Entretanto, enganar-se-á profundamente quem supuser que a autora creia na transparência singela dos discursos e na substância essencial dos fatos, alheia às apropriações, igual a si mesma, à espera da captura cognitiva. Ou seja, a obra não usa, instrumentalmente, filmes para ilustrar uma realidade e comprovar hipóteses, ou ajudar a expô-las. A riqueza e o fascínio deste livro está justamente nessa resistência a simplificações. A reflexão transcorre, mobilizando múltiplos discursos imagéticos, filosóficos ou interpretativos, os quais descrevem experiências como o fazem os atos de fala, os performativos: construindo-as. As cidades objeto da obra resultam dos filmes que as descrevem. Isso seria rico e sofisticado, mas ainda pouco. Nesse ponto, Giovana Z. impõe mais um giro ao parafuso e inscreve seu próprio discurso no meio do caminho, como eixo de articulação, centro gravitacional semântico, mesa de edição. Ocorre que seu discurso, por sê-lo, também descreve construindo. Em outras palavras, a obra, metalinguisticamente complexa, descreve construindo descrições que constroem cartografias urbanas e jogos de poder. Mas em o fazendo, aqui e ali, numa pulsação nervosa, furta-se a ocupar o centro discursivo, delegando às manifestações culturais relatadas e às intervenções históricas rememoradas um deslocamento subreptício para o proscênio. Como esse movimento instituinte dá-se nas franjas, nos poros e na arquitetura formal da obra, armando-se como sua estética, o que se passa é a negação, a auto-imolação sacrificial do discurso-mestre, do discurso-guia, do discurso formal da tese de doutorado. A imolação gera o vácuo que propicia a comunicação entre o leitor (a leitora) e a matéria-objeto, ou melhor, entre as experiências que se cruzam apenas no horizonte ideal dos conceitos e o exercício da recepção, socialmente vivenciado e produzido. O lapso, o intervalo, o vazio provocado pelo subreptício deslocamento do ponto de vista autoral, este vácuo sacrificial, atrai a dádiva do Outro (o leitor, a leitora). Dádiva que não é senão o sentido e a experiência, ou o sentido como experiência, ou a experiência do sentido –exatamente como faz o cinema.

Exatamente como o fazem as cidades, deslocando continuamente sob nossos pés os eixos de gravidade social, os planos de significação, suscitando miragens e embiguidades, conectando-nos e cavando abismos entre nós, atraindo a dádiva fortuita do sentido, o encontro gratuito de uma comunicação parcial e precária. Não à tôa as cartografias são capciosas e ambivalentes: as periferias são o lugar da morte e da redenção, segundo o imaginário coletivo. O Outro é sempre idealizado, para o bem ou para o mal. Das favelas, descerão as tropas libertadoras e as gangues criminosas. De fora, virão imigrantes invasores, alegorias da barbárie –que, todavia, semeamos—ou a salvação. As cidades são plataformas compartilhadas e indutoras de desigualdades, lugares comuns mas fragmentados e divididos, espaços de sociabilidade e violência, amor e ódio, e belezas desfiguradas, trocas e silêncio. É por isso que, a meu juízo, o livro é fascinante e sensibilizará, e provocará intelectualmente, mesmo quem, eventualmente, discordar de algumas de suas conclusões.

Contudo, lembra-nos a autora, nos últimos parágrafos: não há ingenuidades. Os fenômenos identificados, ressignificados, e os personagens reais, seus sofrimentos, suas esperanças, são vampirizados por reapropriações estéticas que levam ao público o entretenimento como mercadoria. Por mais que os discursos da “cultura de massas” sejam críticos e empáticos com os vulneráveis, não escapam à lógica do mercado. Nem mesmo este livro de tantas virtudes, ou esta breve apresentação. Entretanto, há sempre sobras, resíduos, vestígios, que alimentam o espírito e inspiram mudanças. Ou seja, não há apropriações absolutas, nem sistemas inteiramente funcionais. Por isso, continuamos a escrever, a pensar coletivamente, a inventar, a imaginar, sorvendo as migalhas brilhantes de liberdade que o passado sopra em nossa direção (a história não se reduz às ruínas de Benjamin). Por isso, permitimo-nos fruir os momentos sublimes de emancipação. A cidade pode ser outra coisa. A arte é resistência à morte.

Esta obra é vital.

Luiz Eduardo Soares

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